A implementação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), ocorrida por meio do decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, em parceria com os estados, municípios e o Distrito Federal, tinha por objetivo melhorar a qualidade da educação básica em nível nacional. No entanto, desde sua criação, há intensos debates sobre a legalidade e eficácia no sistema educacional.
Essas escolas, que combinam a gestão compartilhada entre civis e militares, foram promovidas pelo governo Jair Bolsonaro como uma possível solução para os problemas de segurança e disciplina nas instituições de ensino público. No entanto, essa proposta levanta sérias questões, principalmente no que diz respeito à sua conformidade com a legislação educacional vigente, especificamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
A LDB (Lei nº 9.394/1996) estabelece os princípios e as diretrizes para a organização do sistema educacional brasileiro, e em nenhum de seus artigos há qualquer menção ou previsão de um modelo de escola cívico-militar. A lei preconiza que a educação pública deve ser laica, inclusiva, democrática e voltada para a formação integral do indivíduo, respeitando a diversidade e promovendo o desenvolvimento crítico dos estudantes. Nesse sentido, a introdução de um modelo militarizado nas escolas públicas pode ser vista como um desvio das diretrizes estabelecidas pela LDB, que prioriza a gestão democrática do ensino e a participação da comunidade escolar no processo de tomada de decisões.
Um dos principais argumentos dos defensores das escolas cívico-militares é que elas promovem a disciplina e melhoram os índices de violência e evasão escolar. No entanto, essa premissa ignora que a educação pública deve ser pautada por valores de cidadania e inclusão, e não por uma lógica de controle e submissão. A educação, de acordo com a LDB, deve priorizar o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia dos estudantes, preparando-os para o exercício consciente da cidadania. A introdução de práticas militares, que muitas vezes se baseiam na obediência rígida e em uma estrutura rigidamente hierarquizada, pode limitar a formação desses valores, desvirtuando a função social da escola.
Outro aspecto preocupante é a falta de evidências concretas de que o modelo cívico-militar realmente melhora a qualidade da educação. Pesquisas têm mostrado que a militarização das escolas não resolve problemas estruturais, como a falta de recursos, a precarização do trabalho docente e a ausência de políticas educacionais voltadas para a valorização do professor. A segurança nas escolas é, sem dúvida, uma questão importante, mas ela deve ser tratada a partir de uma abordagem pedagógica e social, e não por meio de práticas autoritárias e disciplinares que podem criar um ambiente de intimidação.
Além disso, é importante destacar que a gestão das escolas cívico-militares representa uma intervenção militar em uma área que, pela LDB, deveria ser gerida por educadores qualificados, formados para lidar com os desafios pedagógicos. Assim sendo, a presença de militares na gestão escolar coloca na lida direta com os estudantes pessoas sem nenhuma formação pedagógica e tal pode, de forma contudente, comprometer o processo educativo ao subordinar a lógica da formação cidadã a uma perspectiva de controle e obediência, o que contraria os princípios da educação plural e inclusiva defendidos pela Constituição Federal de 1988 e pela LDB de 1996.
Outro ponto que merece reflexão é o impacto dessas escolas na formação de valores democráticos. Em um contexto em que o fortalecimento das instituições democráticas é fundamental, é preocupante que o governo opte por modelos de ensino que possam enfraquecer o debate e o questionamento crítico, elementos essenciais para a formação de cidadãos conscientes. A educação deve fomentar o diálogo, a convivência com a diversidade e o respeito aos direitos humanos, e não impor uma única visão de mundo baseada na disciplina militar.
É preciso, portanto, questionar a legalidade e a legitimidade das escolas cívico-militares dentro do arcabouço jurídico brasileiro. A LDB foi criada para garantir um sistema de ensino inclusivo, democrático e voltado para o desenvolvimento integral do estudante, o que vai de encontro ao modelo cívico-militar. Além disso, o Plano Nacional de Educação (PNE), que é o principal documento orientador das políticas educacionais no Brasil, também não faz qualquer menção à criação de escolas militarizadas como uma solução para os desafios educacionais.
Por fim, a adoção das escolas cívico-militares reflete uma falácia perigosa: a ideia de que os problemas da educação pública podem ser resolvidos com medidas de caráter disciplinar e punitivo. A educação, como previsto pela LDB, deve ser um processo de construção de conhecimento e de formação de cidadãos críticos, autônomos e participativos. Substituir essa lógica por um modelo militarizado é desconsiderar a verdadeira função social da escola e o papel central que a educação desempenha na construção de uma sociedade democrática e inclusiva.
Investimentos equivocados
No debate sobre as escolas cívico-militares, uma questão central tem sido o foco dos investimentos. Em vez de destinar recursos para a presença de cabos, sargentos e tenentes que atuam como fiscais de corredores, intimidando por meio de gritos e ameaças crianças e adolescentes que, em sua marioria trazem marcas de profundas desestruturas familiares, o verdadeiro investimento deveria ser feito na valorização dos professores. O papel dos docentes é fundamental para o desenvolvimento educacional e, ao desviar recursos para a militarização da gestão escolar, corre-se o risco de comprometer a essência da educação, que deve ser centrada no ensino e na formação crítica dos alunos.
Os professores, como protagonistas do processo de ensino-aprendizagem, enfrentam diariamente os desafios de garantir um ambiente de sala de aula produtivo e acolhedor, ao mesmo tempo em que trabalham para formar cidadãos críticos e conscientes. São eles que compreendem as necessidades pedagógicas dos estudantes e têm as ferramentas e o preparo para conduzir o desenvolvimento acadêmico e pessoal de cada um. No entanto, o foco excessivo em disciplina militarizada, promovido pelas escolas cívico-militares, desloca o objetivo central da educação, que deveria estar voltado à qualidade do ensino, para uma ênfase em controle e ordem.
Investir em fiscais de corredores, como cabos e tenentes, é uma medida paliativa, que pode ajudar a combater o problema da indisciplina, mas não enfrenta as raízes dos problemas da educação pública no Brasil. Se a presença de militares parece ser uma solução imediata para questões de segurança, não resolve dificuldades estruturais desde sempre presentes nas escolas, como a falta de recursos pedagógicos adequados, a falta de formação contínua de qualidade para os professores e a melhoria das condições de trabalho dos educadores. É no fortalecimento da carreira docente e no aprimoramento das práticas pedagógicas que reside a verdadeira solução para elevar a qualidade da educação.
Sem receio de equívoco, em vez de gastar com uma estrutura militar, os recursos deveriam ser direcionados para garantir que os professores tenham todas as ferramentas necessárias para exercer seu trabalho com excelência. Além disso, a relação entre professor e aluno, baseada no diálogo, na empatia e na confiança, é essencial para a formação de jovens críticos e preparados para a cidadania. Essa relação não pode ser substituída por uma lógica hierárquica e disciplinar, própria do ambiente militar.
Além disso, a solução para os desafios enfrentados pelas escolas públicas não passa pela imposição de modelos que priorizem a obediência e a disciplina cega, mas sim por um modelo educacional que valorize o pensamento crítico, a criatividade e o desenvolvimento integral dos alunos. Os professores são os profissionais mais bem preparados para conduzir esse processo, pois conhecem as necessidades individuais e coletivas dos alunos e possuem a formação pedagógica adequada para estimular o crescimento intelectual e pessoal.
Portanto, a questão não é se as escolas precisam de mais disciplina, mas se estão equipadas com os recursos certos para promover uma educação de qualidade. E, sem dúvida, o principal recurso em qualquer escola são os professores. São eles que, com apoio e investimento adequado, podem transformar a realidade educacional do Brasil. Se o objetivo é melhorar o desempenho escolar e formar cidadãos conscientes e atuantes, o caminho certo é valorizar o trabalho docente, e não substituir sua centralidade por figuras de rígida autoridade militar.
O futuro da educação passa pelo fortalecimento da base pedagógica e pela garantia de que os professores tenham o respeito e o reconhecimento que merecem. Investir neles é, sem dúvida, a estratégia mais eficaz para enfrentar os desafios da educação pública e construir uma sociedade mais justa e democrática.
Tempo desperdiçado
As escolas cívico-militares têm sido apresentadas como uma solução para os problemas de disciplina e desempenho nas escolas públicas, mas essa proposta merece uma análise mais crítica, especialmente quando se considera o impacto que a introdução de práticas militares tem sobre o tempo de aprendizado dos alunos. A formação escolar deve priorizar o desenvolvimento acadêmico, intelectual e social dos estudantes, e não atividades como marchas, saudações, continências e demais ritos próprios dos quartéis, que, além de não contribuírem para a formação crítica dos jovens, ainda retiram os alunos de sala de aula em momentos cruciais de aprendizagem.
O modelo cívico-militar desvia o foco daquilo que realmente importa na educação. Ao exigir que os alunos participem de formações militares, nas quais aprendem a marchar e a bater continência, ocupa-se um tempo que deveria ser dedicado ao estudo de disciplinas fundamentais como português, matemática, ciências e história. No Enem, principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil, os estudantes não serão cobrados por saber como marchar ou por demonstrar disciplina militar. O Enem, como qualquer avaliação acadêmica séria, exige que os alunos desenvolvam competências cognitivas, de interpretação e de análise crítica, habilidades que não são adquiridas em treinamentos militares, mas sim em sala de aula, com uma educação pautada no conhecimento e no debate.
A educação pública brasileira já enfrenta desafios imensos, como a falta de infraestrutura, a evasão escolar e o baixo rendimento em áreas essenciais do currículo escolar. Ao acrescentar atividades militares à rotina escolar, desvia-se ainda mais o foco da verdadeira missão da escola: formar cidadãos críticos e preparados para enfrentar os desafios do século XXI. Nesse sentido, a escola deve ser um espaço de aprendizado e questionamento, onde os alunos possam desenvolver seu pensamento crítico e sua capacidade de argumentação, e não um lugar onde são treinados para seguir ordens sem questionar, girando à esquerda ou à direita, marchando e batendo continência.
Além disso, é fundamental refletir sobre a real eficácia desse modelo. Mesmo porque, não há evidências suficientes de que a militarização das escolas melhora o desempenho acadêmico dos alunos ou resolve problemas como a violência escolar. Pelo contrário, muitas vezes o ambiente excessivamente disciplinador pode criar um clima de medo e repressão, que não favorece o desenvolvimento da autonomia e da criatividade dos estudantes, aspectos fundamentais para o sucesso escolar e profissional no futuro.
Se a socieade deseja preparar os jovens para o Enem e para a vida, precisa focar naquilo que realmente importa: o conhecimento. A prioridade deve ser melhorar a qualidade do ensino, garantir formação contínua e valorização dos professores, além de investir em materiais pedagógicos e em infraestrutura escolar. Marchar e bater continência não são habilidades que abrirão portas para o ensino superior, nem ajudarão os alunos a desenvolver o pensamento crítico necessário para enfrentar os desafios acadêmicos.
Por fim, o tempo dos alunos na escola é precioso, e cada minuto longe da sala de aula em treinamentos militares representa uma oportunidade perdida de aprender, de questionar e de construir o conhecimento necessário para transformar suas vidas e a sociedade em que vivem. Ao invés de impor práticas militares que nada agregam ao processo educacional, deve-se investir em uma educação de qualidade, que coloque o aluno no centro do processo e que prepare verdadeiramente os jovens para os desafios do mundo atual.
Pedagogos e educadores
Mas o equívoco é originário. Isto porque o decreto que instituiu as escolas cívico-militares no Brasil levanta uma série de irregularidades, principalmente quando se analisam os responsáveis por sua elaboração. Se parece óbvio que na medicina atuem médicos preparados; que na engenharia, atuem engenheiros preparados; que na contabilidade atuem contadores preparados, é igualmente óbvio que a educação conte o concurso de pedagogos e educadores, não com profissionais avulsos, catados aqui e acolá e que migram das mais diversas áreas e ramos de conhecimento.
Nesse sentido, é chocante deparar-se com o fato de que o texto que norteia a criação desse modelo educacional não foi redigido por profissionais da educação, mas sim por pessoas de áreas diversas, como militares e gestores de segurança pública. Isso gera um distanciamento entre as reais necessidades da educação brasileira e a visão restrita que se busca implementar com base em práticas militares.
É fundamental entender que a educação é um campo complexo, que exige conhecimentos específicos de pedagogia, psicologia educacional, sociologia da educação e de diversas outras áreas que formam o arcabouço teórico e prático para uma formação escolar de qualidade. Quando um decreto com impacto tão profundo na estrutura educacional do país é elaborado sem a participação ativa de educadores, perde-se a sensibilidade para as questões que de fato precisam ser abordadas no cotidiano das escolas.
O foco das escolas cívico-militares, conforme estabelecido no decreto, está na disciplina e na ordem, características que, embora importantes em qualquer instituição, não podem ser priorizadas em detrimento de um ensino centrado no desenvolvimento acadêmico e humano dos alunos. As decisões que regem a educação precisam partir de quem vive o dia a dia das salas de aula, de quem entende as dificuldades enfrentadas pelos alunos e pelos professores, e de quem tem formação e preparo para lidar com os complexos desafios do processo de ensino-aprendizagem.
Quando a educação é pensada e organizada por profissionais que não têm experiência direta nesse campo, corre-se o risco de se implantar soluções simplistas para problemas que demandam estratégias pedagógicas bem fundamentadas. O modelo cívico-militar, ao focar em práticas de ordem e controle, acaba desconsiderando aspectos essenciais da formação dos estudantes, como o desenvolvimento da autonomia, do pensamento crítico e da capacidade de diálogo — todos elementos centrais para a educação de qualidade.
A ausência de educadores na concepção desse decreto também reflete um desrespeito pela expertise dos profissionais da educação, que dedicam suas vidas ao estudo e à prática de métodos de ensino e de gestão escolar. Sem a participação dos professores, pedagogos e especialistas, o modelo das escolas cívico-militares surge descontextualizado, ignorando as reais demandas e os reais desafios da educação pública no Brasil.
É urgente que as políticas educacionais sejam construídas por e para os profissionais da educação. São eles que compreendem as particularidades dos alunos e das escolas e que têm a capacidade de criar soluções inovadoras e eficazes. Um decreto que afeta diretamente a vida de milhões de estudantes deve ser fruto de um amplo debate com educadores, gestores escolares e acadêmicos, e não uma imposição feita a partir de perspectivas externas ao campo educacional.
Decreto revogado
O Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), foi oficialmente revogado pelo Decreto nº 11.611, de 19 de julho de 2023. Com essa revogação, a modalidade de escola cívico-militar, que previa a implementação de práticas e valores militares dentro do ambiente escolar, deixa de ter respaldo legal para continuar existindo.
Com a revogação do Pecim, não há mais razão legal ou prática para a continuidade das escolas cívico-militares. O foco agora deve estar na valorização dos profissionais da educação e na promoção de um ambiente escolar voltado para o desenvolvimento crítico, acadêmico e humano dos alunos. A educação precisa ser guiada por princípios pedagógicos sólidos, que priorizem o aprendizado e a formação cidadã, sem desviar a atenção para práticas que pouco contribuem para o avanço educacional.
Assim, com a anulação do decreto original, espera-se que os investimentos antes direcionados para a implementação de escolas cívico-militares sejam agora redirecionados para fortalecer a infraestrutura das escolas, melhorar a formação e remuneração dos professores e criar políticas públicas que efetivamente promovam a melhoria da qualidade do ensino no Brasil.
Respeito ou medo?
As escolas cívico-militares são frequentemente elogiadas pela melhoria da disciplina entre os alunos, que se destaca como um dos pontos fortes apontados por defensores desse modelo. No entanto, é crucial refletir sobre a natureza dessa disciplina: ela é imposta pelo medo e pela autoridade, e não cultivada pela consciência e pelo entendimento do próprio aluno sobre seus deveres e responsabilidades.
A disciplina que nasce do medo pode até garantir um ambiente momentaneamente silencioso e resultados aparentemente positivos, assegurados por meio do controle mais rígido do comportamento, do cumprimento estrito de regras e do medo constante de punições. Contudo, ela não promove um verdadeiro desenvolvimento de valores como respeito, autocontrole e responsabilidade social. Os estudantes, nesse contexto, seguem ordens porque temem as consequências de desobedecer, e não porque compreendem a importância de agir corretamente. Esse tipo de controle externo, embora eficaz para manter a ordem imediata, raramente forma cidadãos críticos e autônomos.
Nas escolas, o objetivo maior da disciplina deveria ser educar para a liberdade responsável, ajudando os jovens a entenderem as razões por trás das regras e das normas sociais. Esse tipo de aprendizado é duradouro, pois não depende da presença constante de uma autoridade para manter a ordem. Quando os alunos desenvolvem a disciplina pela consciência, tornam-se capazes de fazer escolhas éticas por si mesmos, levando esses valores para suas vidas além do ambiente escolar.
Ademais, nas escolas cívico-militares, a imposição da disciplina por meio de figuras de autoridade militar pode criar um ambiente de submissão, em vez de um espaço de aprendizado. As regras são seguidas sob a pressão de punições e de uma hierarquia rígida, o que limita a possibilidade de questionamento e de diálogo. Isso pode inibir o desenvolvimento de habilidades essenciais para a vida democrática, como a capacidade de debater, de discordar respeitosamente e de assumir responsabilidades sem a necessidade de uma supervisão constante.
Em suma, embora as escolas cívico-militares possam ser eficientes em garantir uma ordem imediata, a disciplina imposta pelo medo tem seus limites e perigos. Para formar cidadãos conscientes e responsáveis, é preciso promover um ambiente onde a disciplina venha de dentro para fora, baseada na compreensão e no diálogo, e não apenas em regras impostas de cima para baixo.
Escola pública e laica?
Outro ponto que merece destaque: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece que a educação nas escolas públicas brasileiras deve seguir o princípio da laicidade: o ambiente escolar deve ser independente de doutrinas ou filosofias que possam influenciar indevidamente o ambiente escolar e o processo de ensino. Segundo a LDB, a educação pública no Brasil deve promover o desenvolvimento integral do estudante, respeitando a pluralidade de pensamento e a diversidade cultural. Nesse sentido, argumenta-se que o modelo das escolas cívico-militares, ao adotar práticas e filosofias associadas à disciplina e valores militares, compromete a laicidade da escola pública.
A laicidade escolar – ao menos em tese – garante um espaço educacional neutro, em que os alunos podem construir seu conhecimento e formar sua identidade sem a imposição de valores de um grupo ou segmento social específico. Nas escolas cívico-militares, entretanto, o ambiente é permeado por rituais, símbolos e práticas de formação moral e disciplinar que, muitas vezes, refletem a lógica militar, como o uso de fardas, imposição de ordens hierárquicas, práticas de ritos próprios dos quartéis e disciplina mais rígida. Esse contexto impõe uma filosofia que é estranha ao caráter plural e democrático que a escola pública deve ter.
Ao trazer valores militares para a esfera educacional, a instituição escolar cívico-militar acaba induzindo uma visão de mundo que não corresponde à diversidade cultural e social da sociedade brasileira. O Estado laico pressupõe que o espaço público deve ser neutro, sem privilegiar sistemas de valores de qualquer instituição específica, seja ela religiosa, ideológica ou filosófica. No caso das escolas cívico-militares, os valores militares podem se sobrepor aos valores e visões trazidos pelas diversas famílias dos alunos, violando o princípio da neutralidade.
A LDB prevê que a educação pública deve preparar o aluno para a cidadania plena e crítica, um processo que envolve o desenvolvimento de autonomia, raciocínio crítico e liberdade de pensamento. A influência militar, caracterizada pela obediência estrita e pela hierarquia inflexível, não condiz com essa finalidade e pode até desestimular o desenvolvimento da autonomia do estudante. A filosofia militar é orientada para a disciplina e obediência, em oposição a um ambiente educacional em que a liberdade de expressão e a autonomia sejam estimuladas.
Além disso, as escolas públicas devem refletir o espírito democrático da sociedade, preparando os estudantes para participarem ativamente da vida cidadã, e não para obedecerem passivamente a uma estrutura de autoridade vertical. É essencial que o ambiente escolar seja um espaço que incentive a pluralidade e a participação de todos, algo que o modelo cívico-militar não oferece integralmente, considerando sua estrutura fortemente hierárquica.
Portanto, ao introduzir nas escolas públicas uma filosofia com raízes militares, há uma ameaça direta à laicidade e à pluralidade do espaço escolar, como estabelecido pela LDB. A educação pública deve ser inclusiva, crítica e plural, permitindo que todos os alunos se desenvolvam sem a imposição de qualquer doutrina, seja ela de natureza militar ou de qualquer outra, reafirmando, assim, seu papel como um espaço democrático e laico, conforme garantido pela legislação brasileira.
O excesso disciplinar gera medo, sufoca o ambiente de criatividade e prejudica expressão do pensamento
Um dos problemas mais graves e recorrentes nas escolas cívico-militares é o excesso disciplinar, que pode afetar diretamente o desenvolvimento emocional e psicológico dos estudantes. Em muitos casos, práticas de punição excessivas são aplicadas por motivos triviais, como o simples fato de um aluno bocejar durante a execução do hasteamendo da bandeira.
Esse tipo de controle, fundamentado em normas tão rígidas nas quais desaparecem os elementos de respeito mínimo, compromete o espaço educativo como um local de aprendizado e crescimento pessoal. Como destaca Paulo Freire, a educação deve ser uma prática de liberdade, não de opressão; quando o ambiente escolar se transforma em um local onde cada ação, inclusive as involuntárias, são rigidamente controladas, perde-se a essência de uma educação crítica e emancipadora.
Especialistas em pedagogia e psicologia educacional apontam que a imposição de normas de conduta estritamente militares prejudica o desenvolvimento da autonomia e da criatividade dos estudantes. A pedagoga e pesquisadora Maria Lúcia Oliveira destaca que “a disciplina imposta pelo medo gera obediência passiva, mas não constrói indivíduos críticos”. Em ambientes onde cada gesto ou expressão corporal do estudante é analisado como ato de indisciplina, forma-se uma cultura de repressão que pode gerar ansiedade e insegurança.
Além disso, os excessos disciplinares, como o exemplo de punir um aluno por bocejar, refletem uma visão antiquada e autoritária da educação, que ignora o bem-estar e as necessidades individuais. Em vez de oferecer um espaço para questionamentos, trocas de ideias e construção de conhecimentos, tais ambientes tendem a transformar a escola em um lugar de vigilância constante, limitando o espaço para a expressão e o desenvolvimento integral dos estudantes. Como observa o sociólogo e educador Miguel Arroyo, “a escola precisa ser o espaço da palavra e da escuta, não do silêncio e do medo”, reforçando que a essência da educação está na comunicação livre e no respeito mútuo.
Portanto, o modelo cívico-militar, ao aplicar punições desproporcionais, contraria os princípios fundamentais da educação democrática. O rigor disciplinar, em vez de formar cidadãos conscientes e críticos, resulta em um ambiente de conformismo imposto, onde o aprendizado se torna secundário frente à obediência cega. É essencial que a educação priorize práticas de respeito, diálogo e compreensão, promovendo um espaço escolar onde o aluno se sinta acolhido e valorizado – e não intimidado por punições arbitrárias.
Abuso dos meios de correção e disciplina
A relação entre o excesso de disciplina e punições nas escolas cívico-militares e o Artigo 136 do Código Penal Brasileiro é um tema relevante e delicado. Este artigo versa sobre o abuso dos meios de correção e disciplina, criminalizando práticas que, sob o pretexto de educar ou corrigir, acabam por submeter os indivíduos a sofrimentos desnecessários e injustificados. Nas escolas cívico-militares, esse tipo de abuso é observado em certas abordagens disciplinares que, ao invés de incentivar o aprendizado, acabam por gerar um ambiente de repressão, medo e, muitas vezes, humilhação.
De acordo com o Artigo 136, configura-se como crime “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. Embora o contexto escolar pareça distante dos casos clássicos previstos por este artigo, práticas de correção extremas e punições severas, como as observadas em algumas instituições cívico-militares, podem se enquadrar no conceito de abuso disciplinar.
Educadores como Paulo Freire e Miguel Arroyo defendem que a educação deve se pautar pelo diálogo e pela construção coletiva de conhecimento, e não pela imposição de regras através do medo. Freire, por exemplo, critica a “educação bancária”, na qual o estudante é tratado como um depósito passivo, sem possibilidade de questionar ou dialogar com o saber. Em escolas cívico-militares, a “disciplina” é muitas vezes associada à obediência cega, onde qualquer indício de questionamento ou expressão espontânea pode ser interpretado como insubordinação e tratado com medidas punitivas. Isso vai contra os princípios de uma educação inclusiva e crítica, que busca formar cidadãos conscientes, e não apenas submissos.
Essa lógica de punição exacerbada e sem abertura para compreensão pode facilmente se aproximar do abuso de autoridade, considerando que, em muitos casos, a disciplina rigorosa nessas escolas não leva em conta o contexto e a subjetividade dos estudantes. O psicólogo e educador Augusto Cury também alerta para o perigo de ambientes escolares que se baseiam no controle absoluto, afirmando que “instituições que formam indivíduos apenas pelo medo produzem pessoas com autoestima reduzida e incapazes de lidar com as adversidades de forma resiliente”.
Em algumas escolas cívico-militares, o uso de punições como repreensões públicas, castigos físicos indiretos (exigência de práticas físicas rigorosas) e outras medidas de controle extremas podem se aproximar das práticas que o Artigo 136 visa prevenir. Embora não se trate de agressão física direta, a exposição do aluno a humilhações e pressões psicológicas severas é uma forma de abuso que compromete seu bem-estar emocional e social.
A educação escolar, conforme apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais, deve ser um processo democrático e inclusivo, e o papel do educador é de orientar, não de controlar ou reprimir o aluno. Quando o ambiente escolar se distancia desse princípio e adota métodos que submetem o estudante a sofrimentos psicológicos ou humilhações para mantê-lo disciplinado, entra-se no campo do abuso disciplinar. Isso não apenas fere os direitos individuais do aluno, mas compromete a função social e formativa da escola, tornando-a um lugar de imposição e submissão em vez de aprendizado e desenvolvimento crítico.