Menu Close

A polêmica sobre as escolas cívico-militares

A implementação das escolas cívico-militares no Brasil tem gerado intensos debates sobre sua legalidade e eficácia no sistema educacional. Essas escolas, que combinam a gestão compartilhada entre civis e militares, têm sido promovidas pelo governo como uma solução para os problemas de segurança e disciplina nas instituições de ensino público. No entanto, essa proposta levanta sérias questões, principalmente no que diz respeito à sua conformidade com a legislação educacional vigente, especificamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

A LDB (Lei nº 9.394/1996) estabelece os princípios e as diretrizes para a organização do sistema educacional brasileiro, e em nenhum de seus artigos há qualquer menção ou previsão de um modelo de escola cívico-militar. A lei preconiza que a educação deve ser inclusiva, democrática e voltada para a formação integral do indivíduo, respeitando a diversidade e promovendo o desenvolvimento crítico dos estudantes. Nesse sentido, a introdução de um modelo militarizado nas escolas públicas pode ser vista como um desvio das diretrizes estabelecidas pela LDB, que prioriza a gestão democrática do ensino e a participação da comunidade escolar no processo de tomada de decisões.

Um dos principais argumentos dos defensores das escolas cívico-militares é que elas promovem a disciplina e melhoram os índices de violência e evasão escolar. No entanto, essa premissa ignora que a educação pública deve ser pautada por valores de cidadania e inclusão, e não por uma lógica de controle e submissão. A educação, de acordo com a LDB, deve priorizar o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia dos estudantes, preparando-os para o exercício consciente da cidadania. A introdução de práticas militares, que muitas vezes se baseiam na obediência rígida e na hierarquia, pode limitar a formação desses valores, desvirtuando a função social da escola.

Outro aspecto preocupante é a falta de evidências concretas de que o modelo cívico-militar realmente melhora a qualidade da educação. Pesquisas têm mostrado que a militarização das escolas não resolve problemas estruturais, como a falta de recursos, a precarização do trabalho docente e a ausência de políticas educacionais voltadas para a valorização do professor. A segurança nas escolas é, sem dúvida, uma questão importante, mas ela deve ser tratada a partir de uma abordagem pedagógica e social, e não por meio de práticas autoritárias e disciplinares que podem criar um ambiente de intimidação.

Além disso, é importante destacar que a gestão das escolas cívico-militares representa uma intervenção do Estado em uma área que, pela LDB, deveria ser gerida por educadores qualificados, formados para lidar com os desafios pedagógicos. A presença de militares na gestão escolar pode comprometer o processo educativo ao subordinar a lógica da formação cidadã a uma perspectiva de controle e obediência, o que contraria os princípios da educação plural e inclusiva defendidos pela Constituição Federal e pela LDB.

Outro ponto que merece reflexão é o impacto dessas escolas na formação de valores democráticos. Em um contexto em que o fortalecimento das instituições democráticas é fundamental, é preocupante que o governo opte por modelos de ensino que possam enfraquecer o debate e o questionamento crítico, elementos essenciais para a formação de cidadãos conscientes. A educação deve fomentar o diálogo, a convivência com a diversidade e o respeito aos direitos humanos, e não impor uma única visão de mundo baseada na disciplina militar.

É preciso, portanto, questionar a legalidade e a legitimidade das escolas cívico-militares dentro do arcabouço jurídico brasileiro. A LDB foi criada para garantir um sistema de ensino inclusivo, democrático e voltado para o desenvolvimento integral do estudante, o que vai de encontro ao modelo cívico-militar. Além disso, o Plano Nacional de Educação (PNE), que é o principal documento orientador das políticas educacionais no Brasil, também não faz qualquer menção à criação de escolas militarizadas como uma solução para os desafios educacionais.

Por fim, a adoção das escolas cívico-militares reflete uma falácia perigosa: a ideia de que os problemas da educação pública podem ser resolvidos com medidas de caráter disciplinar e punitivo. A educação, como previsto pela LDB, deve ser um processo de construção de conhecimento e de formação de cidadãos críticos, autônomos e participativos. Substituir essa lógica por um modelo militarizado é desconsiderar a verdadeira função social da escola e o papel central que a educação desempenha na construção de uma sociedade democrática e inclusiva.

Investimentos equivocados

No debate sobre as escolas cívico-militares, uma questão central tem sido o foco dos investimentos. Em vez de destinar recursos para a presença de cabos, sargentos e tenentes que atuam como fiscais de corredores, o verdadeiro investimento deveria ser feito na valorização dos professores. O papel dos docentes é fundamental para o desenvolvimento educacional e, ao desviar recursos para a militarização da gestão escolar, corre-se o risco de comprometer a essência da educação, que deve ser centrada no ensino e na formação crítica dos alunos.

Os professores, como protagonistas do processo de ensino-aprendizagem, enfrentam diariamente os desafios de garantir um ambiente de sala de aula produtivo e acolhedor, ao mesmo tempo em que trabalham para formar cidadãos críticos e conscientes. Eles são quem compreendem as necessidades pedagógicas dos estudantes e têm as ferramentas e o preparo para conduzir o desenvolvimento acadêmico e pessoal de cada um. No entanto, o foco excessivo em disciplina militarizada, promovido pelas escolas cívico-militares, desloca o objetivo central da educação, que deveria estar voltado à qualidade do ensino, para uma ênfase em controle e ordem.

Investir em fiscais de corredores, como cabos e tenentes, é uma medida paliativa que não enfrenta as raízes dos problemas da educação pública no Brasil. A presença de militares pode até parecer uma solução imediata para questões de segurança e disciplina, mas não resolve as dificuldades estruturais, como a falta de recursos pedagógicos adequados, a formação contínua dos professores e a melhoria das condições de trabalho dos educadores. É no fortalecimento da carreira docente e no aprimoramento das práticas pedagógicas que reside a verdadeira solução para elevar a qualidade da educação.

A valorização do professor envolve não apenas melhores salários, mas também a oferta de condições adequadas de trabalho, formação continuada, apoio pedagógico e infraestrutura apropriada. Em vez de gastar com uma estrutura militar, os recursos deveriam ser direcionados para garantir que os professores tenham todas as ferramentas necessárias para exercer seu trabalho com excelência. Além disso, a relação entre professor e aluno, baseada no diálogo, na empatia e na confiança, é essencial para a formação de jovens críticos e preparados para a cidadania. Essa relação não pode ser substituída por uma lógica hierárquica e disciplinar, própria do ambiente militar.

Além disso, a solução para os desafios enfrentados pelas escolas públicas não passa pela imposição de modelos que priorizem a obediência e a disciplina cega, mas sim por um modelo educacional que valorize o pensamento crítico, a criatividade e o desenvolvimento integral dos alunos. Os professores são os profissionais mais bem preparados para conduzir esse processo, pois conhecem as necessidades individuais e coletivas dos alunos e possuem a formação pedagógica adequada para estimular o crescimento intelectual e pessoal.

Portanto, a questão não é se as escolas precisam de mais disciplina, mas se estão equipadas com os recursos certos para promover uma educação de qualidade. E, sem dúvida, o principal recurso em qualquer escola são os professores. São eles que, com apoio e investimento adequado, podem transformar a realidade educacional do Brasil. Se o objetivo é melhorar o desempenho escolar e formar cidadãos conscientes e atuantes, o caminho certo é valorizar o trabalho docente, e não substituir sua centralidade por figuras de autoridade militar.

O futuro da educação passa pelo fortalecimento da base pedagógica e pela garantia de que os professores tenham o respeito e o reconhecimento que merecem. Investir neles é, sem dúvida, a estratégia mais eficaz para enfrentar os desafios da educação pública e construir uma sociedade mais justa e democrática.

Tempo desperdiçado

As escolas cívico-militares têm sido apresentadas como uma solução para os problemas de disciplina e desempenho nas escolas públicas, mas essa proposta merece uma análise mais crítica, especialmente quando consideramos o impacto que a introdução de práticas militares tem sobre o tempo de aprendizado dos alunos. A formação escolar deve priorizar o desenvolvimento acadêmico, intelectual e social dos estudantes, e não atividades como marchas e saudações, que, além de não contribuírem para a formação crítica dos jovens, ainda retiram os alunos de sala de aula em momentos cruciais de aprendizagem.

O modelo cívico-militar desvia o foco daquilo que realmente importa na educação. Ao exigir que os alunos participem de formações militares, onde aprendem a marchar e a bater continência, estamos ocupando tempo que deveria ser dedicado ao estudo de disciplinas fundamentais como português, matemática, ciências e história. No Enem, principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil, os estudantes não serão cobrados por saber como marchar ou por demonstrar disciplina militar. O Enem, como qualquer avaliação acadêmica séria, exige que os alunos desenvolvam competências cognitivas, de interpretação e de análise crítica, habilidades que não são adquiridas em treinamentos militares, mas sim em sala de aula, com uma educação pautada no conhecimento e no debate.

A educação pública brasileira já enfrenta desafios imensos, como a falta de infraestrutura, a evasão escolar e o baixo rendimento em áreas essenciais do currículo escolar. Ao acrescentar atividades militares à rotina escolar, estamos desviando ainda mais o foco da verdadeira missão da escola: formar cidadãos críticos e preparados para enfrentar os desafios do século XXI. A escola deve ser um espaço de aprendizado e questionamento, onde os alunos possam desenvolver seu pensamento crítico e sua capacidade de argumentação, e não um lugar onde são treinados para seguir ordens sem questionar.

Além disso, é fundamental refletirmos sobre a real eficácia desse modelo. Não há evidências suficientes de que a militarização das escolas melhora o desempenho acadêmico dos alunos ou resolve problemas como a violência escolar. Pelo contrário, muitas vezes o ambiente excessivamente disciplinador pode criar um clima de medo e repressão, que não favorece o desenvolvimento da autonomia e da criatividade dos estudantes, aspectos fundamentais para o sucesso escolar e profissional no futuro.

Se queremos preparar nossos jovens para o Enem e para a vida, precisamos focar naquilo que realmente importa: o conhecimento. A prioridade deve ser melhorar a qualidade do ensino, garantir formação contínua e valorização dos professores, além de investir em materiais pedagógicos e em infraestrutura escolar. Marchar e bater continência não são habilidades que abrirão portas para o ensino superior, nem ajudarão os alunos a desenvolver o pensamento crítico necessário para enfrentar os desafios acadêmicos.

Por fim, o tempo dos alunos na escola é precioso, e cada minuto longe da sala de aula em treinamentos militares representa uma oportunidade perdida de aprender, de questionar e de construir o conhecimento necessário para transformar suas vidas e a sociedade em que vivem. Ao invés de impor práticas militares que nada agregam ao processo educacional, devemos investir em uma educação de qualidade, que coloque o aluno no centro do processo e que prepare verdadeiramente os jovens para os desafios do mundo atual.

Pedagogos e educadores

O decreto que instituiu as escolas cívico-militares no Brasil levanta uma série de preocupações, principalmente quando analisamos a origem e os responsáveis por sua elaboração. O texto que norteia a criação desse modelo educacional não foi redigido por profissionais da educação, mas sim por pessoas de áreas diversas, como militares e gestores de segurança pública. Isso gera um distanciamento entre as reais necessidades da educação brasileira e a visão restrita que se busca implementar com base em práticas militares.

É fundamental entender que a educação é um campo complexo, que exige conhecimentos específicos de pedagogia, psicologia educacional, sociologia da educação e de diversas outras áreas que formam o arcabouço teórico e prático para uma formação escolar de qualidade. Quando um decreto com impacto tão profundo na estrutura educacional do país é elaborado sem a participação ativa de educadores, perde-se a sensibilidade para as questões que de fato precisam ser abordadas no cotidiano das escolas.

O foco das escolas cívico-militares, conforme estabelecido no decreto, está na disciplina e na ordem, características que, embora importantes em qualquer instituição, não podem ser priorizadas em detrimento de um ensino centrado no desenvolvimento acadêmico e humano dos alunos. As decisões que regem a educação precisam partir de quem vive o dia a dia das salas de aula, de quem entende as dificuldades enfrentadas pelos alunos e pelos professores, e de quem tem formação e preparo para lidar com os complexos desafios do processo de ensino-aprendizagem.

Quando a educação é pensada e organizada por profissionais que não têm experiência direta nesse campo, corre-se o risco de implantar soluções simplistas para problemas que demandam estratégias pedagógicas bem fundamentadas. O modelo cívico-militar, ao focar em práticas de ordem e controle, acaba desconsiderando aspectos essenciais da formação dos estudantes, como o desenvolvimento da autonomia, do pensamento crítico e da capacidade de diálogo — todos elementos centrais para a educação de qualidade.

A ausência de educadores na concepção desse decreto também reflete um desrespeito pela expertise dos profissionais da educação, que dedicam suas vidas ao estudo e à prática de métodos de ensino e de gestão escolar. Sem a participação dos professores, pedagogos e especialistas, o modelo das escolas cívico-militares surge descontextualizado, ignorando as reais demandas e desafios da educação pública no Brasil.

É urgente que as políticas educacionais sejam construídas por e para os profissionais da educação. São eles que compreendem as particularidades dos alunos e das escolas e que têm a capacidade de criar soluções inovadoras e eficazes. Um decreto que afeta diretamente a vida de milhões de estudantes deve ser fruto de um amplo debate com educadores, gestores escolares e acadêmicos, e não uma imposição feita a partir de perspectivas externas ao campo educacional.

Decreto revogado

O Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), foi oficialmente revogado pelo Decreto nº 11.611, de 19 de julho de 2023. Com essa revogação, a modalidade de escola cívico-militar, que previa a implementação de práticas e valores militares dentro do ambiente escolar, deixa de ter respaldo legal para continuar existindo.

A decisão de revogar o decreto representa um movimento importante na reavaliação das políticas educacionais do país. O modelo cívico-militar foi alvo de inúmeras críticas desde sua implementação, principalmente por parte de educadores e especialistas em educação, que apontavam a inadequação de práticas militares no processo de ensino-aprendizagem. A ideia de transformar as escolas públicas em ambientes militarizados gerou debates acalorados sobre a necessidade de uma abordagem mais pedagógica e menos disciplinar no tratamento das questões escolares.

Com a revogação do Pecim, não há mais razão legal ou prática para a continuidade das escolas cívico-militares. O foco agora deve estar na valorização dos profissionais da educação e na promoção de um ambiente escolar voltado para o desenvolvimento crítico, acadêmico e humano dos alunos. A educação precisa ser guiada por princípios pedagógicos sólidos, que priorizem o aprendizado e a formação cidadã, sem desviar a atenção para práticas que pouco contribuem para o avanço educacional.

Assim, com a anulação do decreto original, espera-se que os investimentos antes direcionados para a implementação de escolas cívico-militares sejam agora redirecionados para fortalecer a infraestrutura das escolas, melhorar a formação e remuneração dos professores e criar políticas públicas que efetivamente promovam a melhoria da qualidade do ensino no Brasil.

Respeito ou medo?

As escolas cívico-militares são frequentemente elogiadas pela melhoria da disciplina entre os alunos, que se destaca como um dos pontos fortes apontados por defensores desse modelo. No entanto, é crucial refletir sobre a natureza dessa disciplina: ela é imposta pelo medo e pela autoridade, e não cultivada pela consciência e pelo entendimento do próprio aluno sobre seus deveres e responsabilidades.

A disciplina que nasce do medo pode até garantir resultados visíveis a curto prazo, como o controle mais rígido do comportamento e o cumprimento estrito de regras. Contudo, ela não promove um verdadeiro desenvolvimento de valores como respeito, autocontrole e responsabilidade social. Os estudantes, nesse contexto, seguem ordens porque temem as consequências de desobedecer, e não porque compreendem a importância de agir corretamente. Esse tipo de controle externo, embora eficaz para manter a ordem imediata, raramente forma cidadãos críticos e autônomos.

Nas escolas, o objetivo maior da disciplina deveria ser educar para a liberdade responsável, ajudando os jovens a entenderem as razões por trás das regras e das normas sociais. Esse tipo de aprendizado é duradouro, pois não depende da presença constante de uma autoridade para manter a ordem. Quando os alunos desenvolvem a disciplina pela consciência, tornam-se capazes de fazer escolhas éticas por si mesmos, levando esses valores para suas vidas além do ambiente escolar.

Nas escolas cívico-militares, a imposição da disciplina por meio de figuras de autoridade militar pode criar um ambiente de submissão, em vez de um espaço de aprendizado. As regras são seguidas sob a pressão de punições e de uma hierarquia rígida, o que limita a possibilidade de questionamento e de diálogo. Isso pode inibir o desenvolvimento de habilidades essenciais para a vida democrática, como a capacidade de debater, de discordar respeitosamente e de assumir responsabilidades sem a necessidade de uma supervisão constante.

Em suma, embora as escolas cívico-militares possam ser eficientes em garantir uma ordem imediata, a disciplina imposta pelo medo tem seus limites e perigos. Para formar cidadãos conscientes e responsáveis, é preciso promover um ambiente onde a disciplina venha de dentro para fora, baseada na compreensão e no diálogo, e não apenas em regras impostas de cima para baixo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *